segunda-feira, 28 de novembro de 2011

É caminhando que vivemos



Como transeuntes seguimos por lugares da vida que nos surpreendem e nos assustam. Assustam porque apenas passamos e não permanecemos; nos surpreendem pelo mesmo motivo. Ficar é modo de estagnação, não compatível com nossa faculdade instigante de seguir adiante. Nossa humanidade é ampla, a eternidade cabe em nós. Por isso não nos contemos em gaiolas. A vida pulsa com a inquietude. O peculiar do caminhar é que, dando passos largos ou curtos, podemos semear, e, ao fim, ter o que colher. Saber que sempre há algo a ser transformado,  a ser aperfeiçoado; porque alguns caminhos carregam outras  trilhas, outras possibilidades e consequentes dúvidas e desvios. A surpresa se dá pela possibilidade de contornos, de reestruturação e de efetiva mudança. Penso estar na direção certa ao seguir fazendo pequenas e necessárias paradas e não permanecer, mesmo que esse lugar seja confortável e seguro. É a segurança e o conforto que impede o ir, o avançar, o prosseguir. Compreender que é no caminho que vislumbramos o pôr-do-sol ou um ato de misericórdia; é no caminho que conhecemos a humildade, é no caminho, ao abrir a porta da alma, que libertamos sentimentos que mesmo trancafiados são capazes de nos desassossegar e construir muros que impedem nosso indispensável "passeio". Deus nos salvou quando caminhávamos em nossa vida sem sentido. Pelo caminho há vestígios de Deus!


Marília Funchal

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya



"Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo, sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz voz persiga - não hão de ser em vão. Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura que submerge inconsolável. Serão ou não em vão? Mas, mesmo que não o sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objeto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam "amanhã". E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é só nossa, que nos é cedida para guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos crê nas veia, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram."

Jorge de Sena
Lisboa, 25 de junho de 1959



quarta-feira, 30 de março de 2011

O dia da vertigem


No dia da vertigem, tudo é vago e incompleto. O peso se dá ao que não é perfeito. O dia permanece rude, como as palavras de um poema revolto, e frívolo, acabando por nutrir-se do que é ordinário, sem sentido, sem valor. Nesse dia, não tenho medo de cair, pois já me vejo numa cova delineada, onde projeto gritos cinza. No mesmo instante, encontro-me numa nuvem obscura com os olhos fixos no raso. Medo de cair? Não acho que seja. A vertigem não é o receio da queda. Vertigem é a voz de um vazio em baixo de mim, dentro de mim, que me atrai e me envolve, fazendo com deseje a queda, por já achar-me em contínua decadência. 

Nesse dia, sou vulto. Um vulto que procura, sem encontrar, a chama onde queimar sua incerteza. Porque a vertigem presume a dúvida: Cair na tentativa insana de me libertar no voo, esvaziando-me de mim, mas locupletando-me de perda, ou permanecer no abismo de pensamentos naufragados, que imploram escuridão e delíquio?  

O dia da vertigem demora a passar, as horas são dias. A noite não chega, e quando chega traz chuva e ventania. Deito-me com um coração comprimido, pequeno, aflito, como de um vulto superficial, frio e amargo.

Ao final, depois de tanta luta e tanto frio, vai fugindo o medo e surgindo a vontade. Acordo com a razão e a constância retomando o comando. Tímidas, aos poucos vão limpando a tempestade do ontem.


Marília Funchal