quarta-feira, 29 de junho de 2011

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya



"Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. É isto o que mais importa - essa alegria. Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto não é senão essa alegria que vem de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém está menos vivo ou sofre ou morre para que um só de vós resista um pouco mais à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente, sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, e sobretudo, sem desapego ou indiferença, ardentemente espero. Tanto sangue, tanta dor, tanta angústia, um dia - mesmo que o tédio de um mundo feliz voz persiga - não hão de ser em vão. Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura que submerge inconsolável. Serão ou não em vão? Mas, mesmo que não o sejam, quem ressuscita esses milhões, quem restitui não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objeto que não fruíram, aquele gesto de amor, que fariam "amanhã". E, por isso, o mesmo mundo que criemos nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é só nossa, que nos é cedida para guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos crê nas veia, da nossa carne que foi outra, do amor que outros não amaram porque lho roubaram."

Jorge de Sena
Lisboa, 25 de junho de 1959